Estamos passando por um momento singular na história. Embora epidemias e pandemias sejam acontecimentos comuns e consideravelmente explorados pela nossa ciência, nenhum outro evento atingiu as proporções causadas pela rápida disseminação do coronavírus pelo mundo.
Pelo gigantesco impacto da pandemia sobre o estilo de vida da humanidade e pelo fato da comunicação atual ser praticamente instantânea, é óbvio que informações técnicas, científicas, sociais e econômicas sobre este grave problema de saúde pública estejam sendo produzidas e consumidas com a mesma voracidade que o próprio vírus, assim como uma gigantesca massa de desinformação tem sido, muito infelizmente, fomentada a todo momento pela ignorância e pelo medo. Contudo, acredito ser oportuno explorar este assunto de uma forma muito mais ampliada, evitando ao máximo adentrar em terrenos pantanosos como este que eu mencionei por último na frase anterior. Para tanto, assim como foi a tônica do meu livro, as ideias que eu descreverei por aqui terão a ciência como base sólida a ser seguida e respeitada, mas jamais delimitadas pelas crenças desta mesma abordagem humana.
Com todo o respeito e profundo pesar pela trágica progressão geométrica de mortes em decorrência do contágio do coronavírus, é muito útil observar o quadro mais sistêmico, se desvencilhando da esfera puramente humana.
Um vírus é, essencialmente, uma sequência de material genético envolvido por uma capa de proteína que precisa das células de outros organismos para se replicar. Em outras palavras, trata-se de um conjunto de instruções que objetivam sua própria replicação e perpetuação, nada muito diferente do que todos os outros seres vivos fazem. Pela perspectiva do mundo natural, trata-se de mais um organismo lutando pela sobrevivência em um ambiente complexamente interconectado, onde ganhos e perdas fazem parte do processo evolutivo de uma absurda quantidade de espécies.
E parece que, além de beneficiar a si próprio, o coronavírus tem beneficiado todas as outras espécies selvagens do planeta, permitindo que a natureza se recupere rapidamente em determinados nichos pelo fato da civilização humana estar praticamente toda isolada. E este seria o primeiro aspecto positivo desta pandemia, embora a parte negativa nos afete muito diretamente. Mas como eu estou fugindo da abordagem meramente antropocêntrica, isso não deveria agravar a nossa indignação ou aumentar o nosso medo mais do que normalmente estamos sendo afetados por estas emoções. Aliás, creio ser justamente a ampliação de nossa visão sobre a vida para muito além da nossa esfera mais imediata, a maior de todas as lições que podemos aprender com esta catastrófica pandemia.
O primeiro aspecto mais óbvio em qualquer catástrofe é a comoção, a empatia e a solidariedade pelos nossos semelhantes que situações como esta normalmente fomentam. Em segundo lugar, o regime de isolamento provoca uma situação inédita para a nossa civilização, de um jeito em que quase todos são obrigados a vivenciar a vida de uma forma introspectiva e reflexiva e ainda a lidar com responsabilidades que, até então, podiam ser negligenciadas em detrimento do convívio decente com cônjuges e família. E mais tragicamente ainda, como está sendo para cada um de nós o convívio forçado com a gente mesmo? O que fazer quando, durante uma vida inteira, nós fomos condicionados a buscar por estímulos exteriores e agora perceber que estamos totalmente despreparados para lidar com os nossos demônios interiores? Ademais, coisas que antes enxergávamos como banais e garantidas como sair para conversar com os amigos, estreitar as relações humanas, questionar o nosso estilo de vida e saber priorizar as questões importantes em um universo de distrações fúteis são situações que passam a ter um valor muito mais alto a partir de agora.
E do ponto de vista focado na origem do problema e de que forma isso teria uma relação com o cativeiro do planeta em que vivemos, parece que o vírus se transforma em uma espécie de “corretivo” por estarmos fazendo algo muitíssimo errado. É sabido há muito tempo que algumas epidemias possuem sua origem nos mercados chineses, onde a venda de animais vivos (alguns até silvestres) ocorre em péssimas condições de acondicionamento e de higiene, de forma que o sofrimento das criaturas ali presentes é totalmente desconsiderado. Por outro lado, a concentração de muitos animais vivos em estado deplorável, socados em jaulas minúsculas, atrai a desdenhosa concentração de pessoas para estes mesmos locais, promovendo as mórbidas condições para a transmissão e proliferação destes vírus para os seres humanos.
Em que pese aqui as eventuais alegações sobre os aspectos culturais da rica e diversa sociedade chinesa, não é porque um hábito ou comportamento é considerado como "normal" que isto passa a ser automaticamente inquestionável e intocável. A escravatura, por exemplo, foi considerada normal por muitos séculos e nem por isso deixou de ser uma prática abominável que, com muitíssimo esforço, foi finalmente abolida (apesar de ainda haver escravidão no mundo). A farra do boi também foi uma tradição no Brasil, até ser praticamente eliminada depois de muito esforço da sociedade civil, autoridades e governo. Crenças e religiões que pregam a superioridade do homem em relação à mulher ferem violentamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos e jamais devem ser justificadas pelo fato de serem características culturais de uma sociedade em particular.
Desta maneira, é possível entender o vírus pelo ponto de vista de “uma correção” que a natureza, a vida ou a Matrix em que vivemos promove no sistema, efetuando um upgrade com o objetivo de aperfeiçoar a realidade virtual na qual estamos inseridos, ao mesmo tempo em que deixa muitos aspectos obsoletos (ou sem suporte técnico). O uso da metáfora tecnológica é para evitar o obscurantismo de certas crenças normalmente utilizadas em situações como esta, onde conceitos religiosos do tipo “castigo divino” poderiam ser facilmente aplicados neste momento. Prefiro interpretar isso de uma maneira muito mais ampliada, de forma que o ecossistema do qual fazemos parte (que no meu modo de entender extrapola a mera condição ambiental) possui condições de se defender e efetuar ajustes para promover o equilíbrio dinâmico de sua própria evolução, mesmo que para isto seja preciso eliminar os seres humanos em uma última instância. E o aspecto moral atrelado à esta condição universal onde nós não somos os protagonistas é aquela velha máxima que as filosofias perenes sempre pregaram: "os humanos ou aprendem pelo amor, ou aprendem pela dor.”
Por último, mas não menos importante, é interessante nós avaliarmos este momento pela perspectiva da proliferação do medo e do amor. Se por um lado as primeiras notícias impactaram negativamente o mundo com o fomento do medo e da apreensão, por outro temos uma enorme oportunidade de transcender essa condição atual em direção ao amor. O medo aqui poderia ser entendido como a priorização do indivíduo em detrimento do todo, buscando garantir a sobrevivência imediata sem se importar com o mundo ao redor. O amor, muito pelo contrário, estaria atrelado à maximização da qualidade da relação com os outros, compreendendo, considerando e respeitando o valor de todos os seres vivos ao nosso redor. O medo divide, separa, rompe e destrói. O amor une, coopera, preserva e perpetua. Onde há a prevalência do medo é porque a ignorância sobre a natureza da realidade impera em um determinado ambiente. E o caminho para o amor passa necessariamente pela compreensão do contexto maior em que vivemos, sendo a mais pura consequência de que estamos no caminho do entendimento dos objetivos da existência. O medo, obviamente, trata-se de uma condição instintiva, sendo uma resposta passiva e automática ao meio por interferência direta do ego em tudo o que nós fazemos. O amor, por sua vez, exige um comportamento ativo, o esforço de entendimento do contexto circundante e o correto posicionamento do ego neste cenário, sendo obviamente um caminho a ser percorrido. Ainda que isso vá contra aos apelos de uma sociedade moderna caracterizada pelo medo e pelo apego à zona de conforto, é o caminho do esforço sinalizado pelo amor que nós devemos abraçar. O medo, portanto, é onde nós estamos. O amor é para onde nós precisamos ir.
Aplicando esta perspectiva ao momento atual, digamos que o amor poderia ser interpretado socialmente como o fomento da cooperação. Precisamos de um mundo muito mais unido, onde a cooperação internacional passe a ser a tônica de nossa era, transcendendo culturas, regionalismos e crenças segregadoras para dar espaço ao desenvolvimento sustentável de uma civilização planetária, posto que os nossos maiores problemas são também de ordem planetária, não havendo mais espaço para o obsoleto "nós e eles". Os maiores desafios de nossa era como pandemias, superpopulação e o próprio aquecimento global só serão resolvidos neste nível de relacionamento sem fronteiras entre países e sem limites entre seres humanos. E a maior ironia aqui talvez seja o fato de que foi preciso o isolamento para que nós acordássemos para o fato de que precisamos estar juntos, apesar de nossas diferenças, para enfrentar os problemas mais prementes do nosso mundo.
Sempre fomos seres sociais desde os primórdios de nossa espécie, e já passou da hora das bandeiras ideológicas caírem, das fronteiras geopolíticas desaparecerem, das desavenças religiosas sumirem em prol da mais fundamental das verdades que muitos ainda se negam a enxergar: biologicamente, todos os seres humanos são praticamente idênticos. Neste sentido, desmoronam todas as nossas diferenças em prol de uma civilização muito mais unida, respeitosa, solidária e cooperativa, já que o vírus não faz distinção entre socialistas e capitalistas, entre católicos e muçulmanos, entre brancos e negros e entre pobres e ricos.
Necessitamos urgentemente da superação dessas diferenças fictícias, criadas pelo medo enraizado no ego humano, pois a inegável unidade biológica está batendo fortemente em nossa cara dizendo: “Acordem! Vocês precisam desesperadamente uns dos outros e o momento é agora! Amanhã poderá ser tarde demais.”
O medo, portanto, nos levará a insistir nos mesmos erros e a entender este momento como o mais horrendo apocalipse. O amor nos levará a entender esta quarentena como uma enorme oportunidade de transcendência. De que lado você quer estar?
Adquira uma cópia do seu livro visitando a nossa loja.
Comments